Performance
Sobre todos os dias.
O homem acorda sem lembrar de sonhos mas diz para si que pode ter sonhado com Ela. Gosta de pensar que, sem saber, ele revive seu amor em devaneios inconscientes, e pode um dia dizer para quem possa perguntar que sim ele sonha com Ela.
Ainda deitado ele abraça sua cachorra e diz que a ama, e pergunta se ela também sente saudades Dela, sabendo que ela não entende, achando que na verdade diz isso para si, sabendo que na verdade ele diz aquilo pelo ato de dizer, para caso alguém esteja ouvindo através das paredes, para caso precise contar que ele finge falar com a cachorra para falar Dela.
Ele acha que deve ficar triste por isso - e fica, isso ele consegue, ele consegue ficar infinitamente triste, de não conseguir se mexer mais de tão triste, e assim paralisado quem sabe aquela angústia transborde, saia um pouco dele, alguém pode perguntar como ele está e ele pode dizer que está um caco, que não é mais uma pessoa produtiva, que não é mais alguém que pode ser amado, mas então ele lembra que foi ele mesmo que achou que deveria estar triste, e se odeia por isso.
O homem se levanta e se odeia e tem terríveis pensamentos e rapidamente diz para ele mesmo que são só pensamentos, e são só pensamentos, que ele sabe que nunca virarão ações porque sabe que precisa estar ali, ele sabe que ele não tem mais motivos para estar ali além dos outros. Ele diz para si que se odeia mas ama demais os outros, ele acha que se ele deixar de estar ali ele vai machucar quem ele ama, e ele se acha querido, e ele é querido, e ele é amado, mas ele se odeia por perceber que ele percebe tudo isso, que ele acha que tem certeza, e ele tem certeza, mas ele se odeia por isso.
E ele olha o celular e confere se recebeu novas mensagens, ele gosta de achar que faz isso porque espera uma mensagem Dela, mas ele se odeia porque sabe que não espera isso, ele só gosta de achar isso porque alguém pode perguntar e ele vai poder dizer que espera uma mensagem Dela, mas ele não espera, ele na verdade espera qualquer mensagem de qualquer contato que lhe dê amor.
Ele odeia a si mas odeia o mundo, não mais que a si, mas odeia que o mundo não estava ali deitado com ele, triste e inventando sonhos, que o planeta não parou tudo que todos faziam em todos os lugares, que agora eles trabalham, eles estudam, eles se esbarram e conversam e riem e não sentem a dor dele. Não todos. Mas então ele se obriga a lembrar que isso é mentira, que algumas pessoas se lembram Dela, estão chorando, e paradas, ou tentando se mexer mas travadas, pela perda incalculável que ele se obriga a pensar que é muito maior que a dele, mas arrasado não sabe como lidar com isso, não sabe como o vazio dos outros pode ser maior que o vazio dele, mas sabe que é, e ele pensa novamente em quão mesquinho é, e novamente quer pedir perdão e não há ninguém ali para lhe perdoar.
No banho ele pensa em chorar e lembra que pouco chora, ele quer tentar chorar porque não aguenta mais estar tão sozinho, ele diz para si que precisa chorar porque quer destravar seu peito, vazar o óleo viscoso que corre nas suas veias e bombeia em seu tórax, que ele sente todo dia entupir seus braços, entupir suas pernas, mas ele sabe que quer chorar porque também quer que vejam sua tristeza, ele pensa que não quer chorar assim, é um choro vil, ele acha que ao se furtar do choro vil ele é melhor, ele é moral, o homem que diz que só pensa Nela parece só pensar nele.
Ele se enxuga e se veste e lembra que deve voltar a escrever para Ela, mas antes precisa escrever outra coisa. No passado ele já tentou descreve-La em palavras, construir em sua homenagem um memorial de letras, algo inteligente, ele é inteligente, ele se acha inteligente, e a todo momento ele a ama, e esse amor parece infinito, e ele tem que ir para algum lugar, ele é sugado por esse vazio em seu peito, ele tem que conseguir preencher esse vazio, isso tem que significar algo, ele deveria conseguir ir além, não só homenageia-La mas reconstruir Sua pessoa inteira com palavras, montar cada pedaço de Sua lembrança em parágrafos, e com um beijo reanimar Seu corpo em uma ideia refeita, dentro dele, ela agora também nos olhos de quem lesse. Mas ele já falhou, ele já escreveu esse texto, mas seu texto é curto, seu texto é pobre, é condensado, é cheio de vícios, seu texto é insuficiente, e ele sabe que sempre será.
Com o café na mão o homem se senta no computador, olha para página em branco por dias. Luta contra, detesta cada letra, cada palavra, cada frase e parágrafo, detesta cada vez que achou que era suficiente mas não era, ele enfim percebe que é inescapável e numa noite escreve seus últimos parágrafos, escreve a última palavra desse texto. Mas o homem levanta no outro dia, ele pensa de novo em estar triste, abraça novamente a cachorra, agora a outra cachorra, e ele refaz seus pensamentos de lembrar, amar e odiar. E refaz alguns parágrafos, um paragrafo como este, escrito por esse homem triste que não consegue andar mais para frente, escrever algo além do final desse texto, que determina a repetição de todos dias da sua vida agora.
Seu novo texto é como este texto, seu novo texto é uma exibição egomaníaca, um texto quebrado, um texto preso nas frases curtas que agora domam sua mente, em nobres pensamentos que ele acha tão espertos, nossa, como são espertos, como ele escreve, como gosta de palavras, como gosta de si, ele que foi tão elogiado, ele que era uma promessa, que não precisava estudar, que achava que era especial, que tinha certeza que era especial, que agora escreveu seu texto e odeia a si, porque seu novo texto é sobre ele, não Ela.
Mas o homem pensa que isso conclui o que escreveu, mas sabe que não é o fim, ele sabe que até a autoaversão que tanto descreveu pode ser só uma palavra, aquela que ele mesmo gosta empurrar para cima de amigos e colegas, que define a modernidade, que é a lógica da internet, ele sabe que é a ideia que rege sua vida agora, e que faz do mundo um lugar pior, e que agora só lhe restou isso, de agir para si e para os outros e achar que é sincero, e sabe que seu texto nasceu da sacada, tão esperta a sacada, de encerrá-lo dessa forma, e se odeia por isso, mas não consegue esconder, e não consegue frear, e o homem termina aquele texto que escreve com uma palavra, que é a mesma que intitula este: performance.


