A.
A tentativa e o significado de escrever alguém.
No último ano pouco escrevi. Muito me pressionei para fazê-lo, mas salvo algumas publicações em redes sociais, alguns comentários sobre filmes, músicas, decidi racionalmente ficar mais quieto. Senti que dissertar sobre o mundo real era me sujar com um cotidiano vão, pequeno diante daquele assunto que deveria ser meu único alvo: falar sobre A., e mesmo assim, falar sobre A. deveria honrar não só sua memória, mas sua pessoa inteira. Então das poucas vezes que teci algumas palavras sobre ela, o fiz indiretamente, me foquei mais no que eu senti e sinto, no que eu lembrava ou lembro, no que eu atravessei ou atravesso.
Na verdade, me sinto aprisionado pela ideia de reconstrução. Tudo que planejo tende a buscar refazer A. como pessoa, como ideia completa de um ser-humano que viveu e já não vive mais. Alguém que lê pode achar estranho, misterioso ou pretensioso manter seu nome oculto por sua inicial, mas é uma ideia que apareceu na minha cabeça, de representar ela em apenas uma letra, a letra divina que vira ícone dela por inteiro, nas curvas e retas da fonte deste texto que compõem a letra “a” maiúscula. Porque é este o problema, acompanhe minha lógica. Uma pessoa é a soma de infinitas finitas variáveis: suas células, compostas por seus genes, compostos por suas moléculas, compostas por seus átomos, compostos por partículas em movimento em uma dança de possibilidades infinitas de velocidade impossível que transformam o vazio entre si em algo cheio e fazem visão e tato a partir do incorpóreo. E minha vontade é de reerguer ela até seus últimos detalhes, descrever cada elétron que zune criando as ligações que, vistas de longe, formavam seus finos dedos. Sequenciar assim toda cadeia genética que desenharam seu espesso e volumoso cabelo que caía durante os últimos meses da sua vida, atacado pela quimioterapia.
Mas descrever isso não é o bastante. Preciso remontar toda sua massa de proteínas e ossos e carne e pele e tendões, preciso refazer com precisão seus pulmões, coração, coluna vertebral e seu abdômen. E então percebo que preciso refazer seu câncer. Suas próprias células que lutavam contra elas mesmas, um comportamento de autodestruição de uma doença que só consigo enxergar como demoníaca, intencionalmente maligna, que destrói seu corpo hospedeiro para crescer e crescer e morrer. E eu não posso ignorar que essa era A. por completo, com aquele horror abjeto tomando e distorcendo ela, insuspeita, dormindo ao meu lado naqueles meses anteriores, ou dormindo na maca do hospital, preocupada com a tristeza daqueles que ao final ficariam pra trás. E quando eu refizer seu cérebro, refaço também suas memórias, as lembranças de 34 anos de uma vida truncada e alquebrada e que moldaram uma pessoa alegre, inteligente, amorosa e correta. Alguém pra quem o amor materno era um mar, o amor fraterno um rio, e o amor pela família e amigos era natural como respirar. E quando ressurgido, o amor que recebi viria junto, sonho eu. Mas infelizmente não é o bastante. Preciso reescrever todo seu ódio, ódio que sentia direcionado ao que era justo recebe-lo, mas também aquele que surgia em momentos de destempero e falha. Preciso remontar suas decepções. Sua tristeza. Seu medo naqueles últimos dias. Seu cansaço. Preciso refazer aquelas últimas horas na UTI, quando sozinha partiu, longe da minha mão, do sorriso da sua irmã, da voz da sua mãe.
Eu sei que é uma tarefa impossível de ser realizada, restaurar um edifício orgânico que é um indivíduo, descrever tão detalhadamente um ser vivo para que uma máquina a refaça pulsando. Mas mesmo que assim fosse capaz, a raiz do problema é o que está nos espaços deixados até pela mais esmiuçada representação verbal de alguém. É mais do que a pessoa era, é o que a pessoa seria, cada milésimo de segundo que formavam todas as possibilidades de alguém. É o que eu imagino que muitos chamem de “alma”. O nada que fica entre o espaço do núcleo e do campo dos elétrons, o branco entre uma linha e outra, a distância entre duas letras que formavam seu nome, o enorme vazio ao redor de uma única letra, vazio que agora é infinitamente maior que o tênue desenho da fonte que escreve este "A.” Uma letra seguida de um ponto final.
Eu penso nela todos os dias. Não em todos os momentos, a vida é um acontecimento implacável, mas são incontáveis vezes durante o transcorrer das horas que me pego lembrando de algo ou imaginando sua reação diante do que estou vivendo, ouvindo, assistindo. Mas queria terminar este texto descrevendo, quem diria, uma imagem dessas que aparece sem motivo aparente, como que se minha mente precisasse pensar em A.: eu a imagino valsando no ar, seus longos braços estendidos como se segurando mãos invisíveis, girando na sala de casa, sorrindo, óculos no rosto, quente, feliz, amando, recebendo do meu coração tudo que ele é capaz de dar. Eu acho que nunca a vi dançar, mas sei que essa imagem agora existe em mim e preenche um pouco os espaços entre o que se foi e o que ficou.



Belo texto, Gabriel! Essa reconstrução pessoal de alguém me lembrou um pouco o Aftersun, de 2022. Eu cometi o erro de ver esse filme em público (eu tenho pouco tempo "livre" pra filmes, acabo encaixando entre refeições e transporte público, o que compromete o resultado) e não conseguirei reproduzir o impacto de quando o assisti. Mas penso muito na imagem que deixarei pras minhas filhas e como lembrarão de mim.
Não a conheci, mas creio que A. gostaria de como você a descreveu.
Sem palavras.